domingo, 26 de fevereiro de 2012

Mais um texto de Luís Fernando Veríssimo.

Exercício de interpretação com texto “O Recital”

O recital
Uma boa maneira de começar um conto é imaginar uma situação rigidamente for­mal - digamos, um recital de quarteto de cordas - e depois começar a desfiá-la, como um pulôver velho. Então, vejamos. Um recital de quarteto de cordas.
O quarteto entra no palco sob educados aplausos da seleta plateia. São três homens e uma mulher. A mulher, que é jovem e bonita, toca viola. Veste um longo vestido preto. Os três homens estão de fraque. Tomam os seus lugares atrás das partituras. Da esquer­da para a direita: um violino, outro violino, a viola e o violoncelo. Deixa ver se não esque­ci nenhum detalhe. O violoncelista tem um grande bigode ruivo. Isto pode se revelar importante mais tarde, no conto. Ou não.
Os quatro afinam seus instrumentos. Depois, silêncio. Aquela expectativa nervosa que precede o início de qualquer concerto. As últimas tossidas da plateia. O primeiro vio­linista consulta seus pares com um olhar discreto. Estão todos prontos, o violinista colo­ca o instrumento sob o queixo e posiciona seu arco. Vai começar o recital. Nisso...
Nisso, o quê? Qual é a coisa mais insólita que pode acontecer num recital de um quarteto de cordas? Passar uma manada de zebus pelo palco, por trás deles? Não. Uma manada de zebus passa, parte da plateia pula das suas poltronas e procura as saídas em pânico, outra parte fica paralisada e perplexa, mas depois tudo volta ao normal. O quar­teto, que manteve-se firme em seu lugar até o último zebu - são profissionais e, mesmo, aquilo não pode estar acontecendo -, começa a tocar. Nenhuma explicação é pedida ou oferecida. Segue o Mozart.
Não. E preciso instalar-se no acontecimento, como a semente da confusão, uma pequena incongruência. Algo que crie apenas um mal-estar, de início, e chegue lentamen­te, em etapas sucessivas, ao caos. Um morcego que pousa na cabeça do segundo violi­nista durante um pizzicato. Não. Melhor ainda. Entra no palco um homem carregando uma tuba.
Há um murmúrio na plateia. O que é aquilo? O homem entra, com sua tuba, dos bastidores. Posta-se ao lado do violoncelista. O primeiro violinista, retesado como um mergulhador que subitamente descobriu que não tem água na piscina, olha para a tuba entre fascinado e horrorizado. O que é aquilo? Depois de alguns instantes em que a ten­são no ar é como a corda de um violino esticada ao máximo, o primeiro violinista fala:
- Por favor...
- O quê? - diz o homem da tuba, já na defensiva. - Vai dizer que eu não posso ficar aqui?
- O que o senhor quer?
- Quero tocar, ora. Podem começar que eu acompanho.
Alguns risos da plateia. Ruídos de impaciência. Ninguém nota que o violoncelista olhou para trás e quando deu com o tocador de tuba virou o rosto em seguida, como se quisesse se esconder. O primeiro violinista continua:
- Retire-se, por favor.
- Por quê? Quero tocar também.
O primeiro violinista olha nervosamente para a plateia. Nunca em toda a sua car­reira como líder do quarteto teve que enfrentar algo parecido. Uma vez um mosquito entrou na sua narina durante uma passagem de Vivaldi. Mas nunca uma tuba.
- Por favor. Isto é um recital para quarteto de cordas. Vamos tocar Mozart. Não tem nenhuma parte para a tuba.
- Eu improviso alguma coisa. Vocês começam e eu faço o um-pá-pá.
Mais risos da plateia. Expressões de escândalo. De onde surgiu aquele homem com uma tuba? Ele nem está de fraque. Segundo algumas versões veste uma camiseta do Vasco. Usa chinelos de dedo. A violista sente-se mal. O violinista ameaça chamar alguém dos bastidores para retirar o tocador de tuba à força. Mas ele aproxima o bocal do seu ins­trumento dos lábios e ameaça:
- Se alguém se aproximar de mim eu toco pof.
A perspectiva de se ouvir um pof naquele recinto paralisa a todos.
- Está bem - diz o primeiro violinista. - Vamos conversar. Você, obviamente, entrou no lugar errado. Isto é um recital de cordas. Estamos nos preparando para tocar Mozart. Mozart não tem um-pá-pá.
- Mozart não sabe o que está perdendo - diz o tocador de tuba, rindo para a plateia e tentando conquistar a sua simpatia.
Não consegue. O ambiente é hostil. O tocador de tuba muda de tom. Torna-se ameaçador:
- Está bem, seus elitistas. Acabou. Onde é que vocês pensam que estão, no século XVIII? Já houve dezessete revoluções populares depois de Mozart. Vou confiscar estas partituras em nome do povo. Vocês todos serão interrogados. Um a um pá-pá.
Torna-se suplicante:
- Por favor, só o que eu quero é tocar um pouco tam­bém. Eu sou humilde. Não pude estudar instrumento de corda. Eu mesmo fiz esta tuba, de um Volkswagen velho. Deixa...
Num tom sedutor, para a violista:
- Eu represento os seus sonhos secretos. Sou um produto da sua imaginação lúbrica, confessa. Durante o Mozart, neste quarteto antisséptico, é em mim que você pensa. Na minha barriga e na minha tuba fálica. Você quer ser violada por mim num allegro assai, confessa...
Finalmente, desafiador, para o violoncelista:
- Esse bigode ruivo. Estou reconhecendo. É o mesmo bigode que eu usava em 1968. Devolve!
O tocador de tuba e o violoncelista atracam-se. Os outros membros do quarteto entram na briga. A plateia agora grita e pula. E o caos! Simbolizando, talvez, a falência final de todo o sistema de valores que teve início com o Iluminismo europeu ou o triunfo do instinto sobre a razão ou, ainda, uma pane mental do autor. Sobre o palco, um dos resultados da briga é que agora quem está com o bigode ruivo é a violista. Vendo-a assim, o tocador de tuba para de morder a perna do segundo violinista, abre os braços e grita: "Mamãe!"
Nisso, entra no palco uma manada de zebus.
VERÍSSIMO, Luís Fernando. O analista de Bagé. São Paulo: Círculo do Livro, s. d.
O narrador assume no texto uma voz explícita, que expõe ao leitor vários procedimentos e dúvidas referentes ao desenvolvimento da história. Utilize esses momentos da narrativa para demonstrar que um texto é sempre fruto de intenções e projetos de quem o produz.
"Isto poderia se revelar importante mais tarde, no conto. Ou não."
- Qual elemento é retomado pelo pronome isto?
- Comente a importância desse elemento em duas passagens posteriores: depois do primei­ro diálogo entre o homem da tuba e o líder do quarteto e antes da confusão que antece­de a entrada dos zebus.
"Nisso..." O que prepara essa palavra? Você, leitor, o que passa a esperar depois que a lê? E o narrador, que faz depois de enunciá-la?
O quarto parágrafo parece ser uma digressão, ou seja, um momento em que o texto foge ao tema principal. Depois da leitura do texto inteiro, essa impressão continua? Qual a importância real desse parágrafo para a estrutura do texto?
O quinto parágrafo nos mostra como deve ser o desenvolvimento de um conto. Relacione o que se diz nesse parágrafo com a série de acontecimentos que o seguem.
Aponte, no penúltimo parágrafo, o momento em que o texto avalia aquilo que está sendo nar­rado. Que tipo de linguagem é então utilizado?
O desfecho do texto é surpreendente? Relacione esse desfecho com o que é dito no quarto e no quinto parágrafos. Não deixe de levar em conta aquilo que o narrador havia concluído anteriormente sobre a manada de zebus.
O texto nos apresenta um universo em que muitas coisas se mostram diferentes do que deter­mina a lógica do cotidiano. Pensando nisso, comente:
- o valor do argumento colocado pelo homem da tuba ("Se alguém se aproximar de mim eu toco pof”) para evitar a aproximação de quem o quisesse retirar de cena.
- a linguagem utilizada pelo homem da tuba na sequência em que se torna ameaçador (parágrafo 23), suplicante (parágrafo 25) e sedutor (parágrafo 27).
- a ambiguidade da passagem "Mas nunca uma tuba" no parágrafo em que o primeiro violinista se recorda de situações difíceis anteriores.
Utilize o conhecimento adquirido sobre o texto "O recital" para comprovar que um texto é um todo estruturado e não uma mera justaposição de partes desconexas.

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